terça-feira, 17 de dezembro de 2013

OS QUENIANOS, VAI ENCARAR?


Por que os quenianos ganham todas?

Edição 223 - ABRIL 2012 - FERNANDO BELTRAMI
REVISTA CONTRA RELOGIO.


 Muitas são as razões alegadas para a supremacia queniana nas corridas de rua e maratonas. Mas ainda assim faltam algumas peças para fechar esse quebra cabeça.
 
No ano passado, os quenianos venceram todas - todas - as principais maratonas do mundo. O recorde mundial, então, que até o início dos anos 2000 se acreditava que duraria muito tempo, foi constantemente podado ao longo da última década. Em 2011, o melhor tempo não queniano em uma maratona foi o do brasileiro Marílson dos Santos, com a 21ª melhor marca. A extensão do domínio queniano nas provas de longa distância fascina público e cientistas, e é fácil entender por que: uma tribo de pouco mais de 3 milhões de pessoas bate todo o resto do mundo. O que não é tão fácil compreender é o mecanismo por trás deste domínio. Uma "explicação" que se ouve constantemente é que os quenianos precisavam - e alguns ainda precisam - correr vários quilômetros todos os dias, indo e voltando da escola.
 
Esta idéia de que o volume de atividade física acumulado durante a infância e adolescência seja o fator responsável pela dominância queniana nas corridas foi apresentando em uma série de estudos publicados nos anos 90 por um grupo escandinavo, que comparou corredores dinamarqueses com corredores quenianos. Um destes concluiu que "a atividade física durante a infância, combinada com intenso treinamento durante a adolescência, é que os tornam corredores tão superiores".
 
Um estudo de 2007 coletou informações demográfica de mais de 400 corredores de elite queniano e cerca de 90 quenianos não corredores, utilizados como controle. A pesquisa demonstrou que quanto maior o grau de sucesso nas corridas, maior a proporção de entrevistados que pertencia à tribo dos kalenjin, e maior também o número de entrevistados que utilizava a corrida como forma de locomoção para ir à escola. Mas esta explicação, sozinha, não basta.
 

Se o sucesso queniano pudesse ser explicado pela questão de distância da escola, corredores de altíssimo nível estariam espalhados por todo o continente africano, pois a precariedade de transporte não é uma exclusividade do Quênia. Na verdade, alguns anos depois do trabalho inicial, o mesmo grupo escandinavo derrubou a hipótese das idas e vindas para a escola, mostrando que crianças do Quênia possuem níveis de atividade física semelhantes a crianças na Dinamarca.
 
Outro trabalho de um grupo norueguês, realizado em 2006, mostrou não haver diferenças no consumo máximo de oxigênio entre crianças norueguesas e da Tanzânia. Além disso, diversos estudos retrospectivos que analisam a carga de treino realizada por atletas de alto nível de diversos esportes ao longo de suas vidas revelam não haver grande importância da quantidade de treino feita durante a infância.
 

MAGREZA E PERNAS LONGAS. Ainda com relação à hipótese de que a vida rural em altitude tenha levado os quenianos a se tornarem os atletas que são, existe um trabalho que comparou as características físicas, capacidade de exercício e o perfil de atividades físicas em adolescentes quenianos que viviam na zona urbana e na zona rural do país, todos da tribo nandi (kalenjin foi um nome criado para o povo que falava nandi). Os adolescentes vindos da zona rural apresentaram um consumo máximo de oxigênio cerca de 10% maior (55,0 contra 50,0 ml/kg/min). Fora isso, ambos os grupos possuíam um IMC baixíssimo, na casa de 18,5 (para calcular o seu IMC, divida seu peso pelo quadrado da sua altura; para se ter um IMC de 18,5 é preciso uma combinação como 1,72 m de altura e 55 kg), e o biotipo típico dos corredores africanos, com pernas longas e finas.
 
O tempo gasto em trabalhos no campo e atividades físicas de lazer também foi maior para os adolescentes que viviam no meio rural, o que explicaria seu maior consumo máximo de oxigênio. Estes meninos participaram de um treinamento de 12 semanas, para que se avaliasse o potencial de resposta ao treinamento de corrida que cada um apresentava. Curiosamente, tanto os garotos da cidade quanto os da zona rural apresentaram os mesmos percentuais de melhora, tanto em consumo de oxigênio (VO2Max), economia de corrida, diminuição da concentração de lactato sanguíneo e outros.
 
No entanto, como os garotos do interior já começaram o estudo com uma capacidade física mais elevada, eles mantiveram esta diferença ao longo de todo o treinamento. Ao final das 12 semanas, os da cidade correram os 5 km em 20h25min, enquanto os outros já o faziam em 18h42min. É uma diferença muito grande em performance, especialmente se considerarmos que vários dos parâmetros fisiológicos eram virtualmente idênticos entre os grupos.
 

Os autores do trabalho creditam a diferença em performance às diferenças em consumo máximo de oxigênio (55,6 e 59,1 ml/kg/min para os meninos da cidade e do campo, respectivamente, ao final do treinamento). Uma diferença em VO2 desse porte, cerca de 3.5 ml/kg/min, equivale ao que é necessário para que se aumente a velocidade de uma esteira em cerca de 1,0 km/h. Essa é mais ou menos a diferença de velocidade dos 5.000m entre os dois grupos.
 
Apesar de os valores de consumo máximo de oxigênio explicarem as diferenças de performance entre os garotos quenianos com diferentes estilos de vida, corredores quenianos não possuem um VO2max mais alto que os europeus, na verdade seus valores podem ser até um pouco mais baixos. Se a diferença não está na capacidade de consumir oxigênio, uma velocidade de corrida mais alta deve ser explicada por uma variável.
 
 
CORRIDA ECONÔMICA. Na corrida de longa distância, os três principais determinantes da velocidade são o VO2max, a economia de corrida e o percentual do VO2max sustentado durante a prova. Entre as duas últimas, e economia de corrida tem sido apontada como principal diferença entre corredores africanos e caucasianos (brancos).
 
Para correr rápido por longas distâncias, não basta ter a habilidade de consumir grandes quantidades de oxigênio, é preciso também conseguir convertê-lo em velocidade de deslocamento da forma mais eficiente possível. Atletas de origem africana possuem uma grande vantagem em relação aos europeus neste sentido. Via de regra, eles possuem membros inferiores mais alongados e finos, que pesam menos.
 

Assim, o custo energético para fazer a reposição das pernas durante a corrida se torna muito mais baixo para os africanos. Já foi demonstrado que corredores vindos da Eritréia possuem pernas mais longas, panturrilhas mais finas e um índice de massa corporal menor quando comparados com corredores espanhóis. O resultado dessas diferenças é que os africanos consumiam 12% menos oxigênio que os espanhoís para correr a 21 km/h, o que implica que eles poderiam correr bem rápido até estarem no mesmo grau de esforço relativo.
 
Dados de outros trabalhos corroboram esta idéia, com valores variando entre 8-12% de melhor economia de corrida para os africanos. O único problema desta hipótese é que ela se aplica a todos os corredores que possuem um biótipo parecido com o dos quenianos, e se este fosse o fator responsável pelo elevado nível de performance dos corredores teríamos uma disputa muito maior entre atletas de diversas nações africanas.
 
ALTITUDE NÃO EXPLICA. Outra teria muito popular que explicaria o fenômeno queniano é o fato de eles viverem e treinarem em altitude. Mais uma vez, no entanto, as contas não fecham. Os kalenjins vivem numa altitude de cerca de 2.000m, o que é encontrado em diversas partes do mundo. Além disso, o principal efeito de se viver em altitude seria uma capacidade aumentada de transportar e utilizar oxigênio, o que seria mostrado, por exemplo, com um VO2Maxmais alto, o que não é o caso.
 
Como já se viu, os quenianos não possuem um VO2max, ou qualquer outra variável ligada ao sistema cardiovascular, mais alto do que atletas de outras nacionalidades. É verdade, no entanto, que a atividade de algumas enzimas ligadas à produção de energia é bem mais alta em quenianos do que em atletas brancos. Como sempre, no entanto, esta não é uma exclusividade queniana.
 
Um trabalho publicado agora em 2012 por um grupo de italianos, promete aumentar a discussão. Os autores tiveram acesso a uma seleto grupo de corredores, quenianos da tribo kalenjin e corredores europeus. Os quenianos possuíam um tempo médio em maratona de 2h07, enquanto os europeus eram ligeiramente mais lentos. O resultado foi o contrário do que se previa: os quenianos não apresentaram nenhuma diferença significativa em relação aos europeus, nem mesmo quanto à sua economia de corrida.
 
Ambos os grupos possuíam o mesmo consumo máximo de oxigênio, economia de movimento similar e estavam no mesmo percentual do VO2Max em seu ponto de limiar anaeróbico, o que levou os autores a crer que a razão pela qual os quenianos se destacam nas provas de fundo não está relacionada com a energética de corrida.
 


 
MELHOR RESFRIAMENTO. Uma hipótese interessante diz respeito à termorregulação. Hoje se sabe que cada corredor possui uma temperatura máxima que seu corpo tolera durante o exercício, que é de cerca de 40°C. O aumento de temperatura corporal depende primariamente da taxa metabólica, ou da velocidade de corrida, e em segunda instância da capacidade de perda de calor de cada um. Ou seja, o corpo "cria" calor por um mecanismo e se desfaz dele por outro, a sudorese.
 
O resultado dessa equação é a taxa de aumento da temperatura corporal, que nosso organismo calcula em termos de quanto tempo de atividade ainda temos, para saber se no ritmo atual iremos "super-aquecer" ou não. Os corredores africanos, menores e mais esguios, aquecem menos, e possuem mais facilidade de perda de calor. Pense em como é mais fácil desmanchar uma barra de gelo fina do que um bloco de gelo mais compacto, ainda que os dois tenham o mesmo peso absoluto. A razão entre a superfície de contato com o meio externo e a massa corporal está à favor dos africanos, o que favorece a perda de calor para o meio e possibilita que eles corram por mais tempo em altas velocidades do que atletas europeus antes que seus corpos emitam sinais de alerta, na forma de fadiga.
 
No final das contas, nenhum fator independente explica por completo a supremacia queniana nas corridas de fundo. A resposta deve combinar um pouco de tudo: a altitude, a melhor economia de corrida, a necessidade de percorrer longas distâncias a pé etc. É preciso lembrar que qualquer dos fatores fisiológicos ou históricos apresentados como argumento pode ser encontrado em outros povos, e talvez os kalenjins tenham simplesmente tido a sorte de reunir todos eles ao mesmo tempo.
 
Tão importante quanto o resto talvez seja o barulho que nós fazemos em torno disso. O mundo "branco" está há anos procurando por uma evidência concreta que explique o domínio queniano, na crença de que algo singular explique sua vantagem nas corridas, e isso oferece uma incontestável vantagem psicológica aos quenianos, o que só favorece seu reinado.

 

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